"Diz-me como treinas e dir-te-ei como jogas." A frase celebrizada por Paulo Bento para justificar a ausência de Miguel Veloso assenta que nem uma luva na tese de João Florêncio, um jovem treinador (27 anos) que pretende provar que é possível treinar como se joga, rentabilizando as sessões. "O meu trabalho é muito bonito, mas como me disse Mourinho, vai lá pôr em prática, depois falamos. E eu fui", contou o treinador que o Diário de Notícias foi encontrar no Atlético do Cacém, clube que acreditou nele e o acolheu.
E como chegou a tese a José Mourinho? "Através de um amigo. Depois conhecemo-nos, ele mostrou que é um excepcional gestor de recursos humanos e desafiou-me a provar que era possível pôr a tese em prática", explicou o coordenador da formação do Cacém. João fez a especialização na Universidade Lusófona e no Benfica, onde estagiou com Fernando Santos. Como é "bom observador" e vai "especulando" sobre as coisas começou a pensar como seria o jogador português daqui a dez anos com este método de treino. Chegou à conclusão de que se "perde muito tempo" com coisas que não se vão pôr em prática no jogo, como o aquecimento com corridas à volta do campo ou os passes frente-a-frente. Para ele os "aquecimentos têm de contemplar uma relação dinâmica do jogador com a bola em função dos adversários e dos objectivos de jogo". Por isso, critica os técnicos portugueses, demasiado "agarrados" à justificação de que há grandes jogadores que foram formados pela via tradicional: "É verdade, mas podem ser melhores e eu vou prová-lo."
Com a "ajuda" do amigo Paulo Mendes, que o representa, acredita que pode ir longe. E nos escalões de formação do Cacém (em ano e meio) já estabeleceu um padrão de orientação, de apenas três palavras, para os jogadores usarem durante os jogos, como se fossem mágicas: "fica" (para fazer contenção e cobertura sem falta), "mata" (fazer contenção mais agressiva para manter o equilíbrio da equipa) e "bola" (para cortar linhas de passe e espaço ao adversário).
Deixou para trás um contrato profissional com o andebol do Benfica, "bem pago", para ir treinar um clube de futebol amador. "Eu não quero dinheiro nem protagonismo, apenas que os meus jogadores acreditem mais naquilo que lhes digo. O Mourinho é hoje mais treinador porque se mandar alguém bater com a cabeça na parede ele bate. É essa relação de confiança que eu ou outro treinador temos de construir", disse.
E tal como aconteceu com Il Specialle, chegará o dia em que estará frente a frente com "o maior génio do futebol português", Pinto da Costa: "E ele saberá quem eu sou."
"Jogador deve saber usar o árbitro a favor"
A tese baseia-se em sistemas dinâmicos complexos e pretende romper com os métodos habituais dos treinadores portugueses. Como? Partindo do princípio de que uma pequena acção pode influenciar a outra (teoria do caos). Segundo João Florêncio não se pode trabalhar um elemento isoladamente, pois há um envolvimento em constante mutação e uma tarefa, a de jogar para ganhar. E por isso "criou" três constrangimentos onde é possível trabalhar: o do praticante, o do envolvimento e o da tarefa.
É aquilo que o jogador pode ou não fazer, como se fosse um funil (no interior ficam as possibilidades e no exterior as condicionantes), que se abrirá muito ou pouco, numa relação directa entre genética/treino e prática. "Quaresma, por exemplo, tem uma técnica fantástica, daí poder fazer muitas coisas e, das que ele pode fazer, decide bem ou mal. Um jogador mais limitado vai ter de tomar outras decisões, mas não necessariamente piores, pois o que interessa é tomar a decisão certa num determinado tempo e espaço e assim compensar o facto de não ter a mesma gama de fintas do Quaresma, nem de jogo de rua do Cristiano Ronaldo", explica.
É vulgar os treinadores dizerem que não há dois jogos iguais. Porquê? Porque o envolvimento (golos, público, chuva, vento, lance dúbios, árbitro) muda de uma partida para a outra. A arbitragem é um bom exemplo de como o envolvimento pode ser trabalhado e não desvalorizado. "Se o jogador souber se o árbitro é "picuinhas" (marca tudo), ou "pingue-pongue" (marca um para cada lado) ou se é do tipo "inglês" (deixa jogar) pode tirar proveito disso. Porque não jogar com o árbitro? Ele faz parte do jogo... Os meus jogadores já sabem que tipo de árbitro vão ter pela frente. Isso é envolvimento. Não podemos é dizer que tivemos azar com o árbitro, sem transpor estas situações para o treino", critica o jovem técnico do Atlético do Cacém.
O ambiente do treino também pode ser manipulado para o tornar idêntico ao jogo: "No Benfica, os treinos eram às 10.00 da manhã com o chilrear dos passarinhos, ora esse ambiente nada tem que ver com o Estádio da Luz. Podiam colocar um sistema de som com as palmas, os cânticos e até os assobios, para a mente dos jogadores se habituar e não sentir tanta pressão nos jogos. Estes factos são importantes, ainda mais quando se joga ao mais alto nível."
É o jogo em si, o único que não muda. Aquilo que os verdadeiros treinadores têm de dominar, a especificidade do jogo de futebol de onze para onze, para "deixarem de ser apenas Profs. ou misteres".
Só 9% do treino é dedicado ao remate
Avançados.
Tese de Florêncio concluiu que só 9% do tempo de treino é dedicado aos remates à baliza. 81% da sessão é dedicada a corridas e exercícios físicos.
Treino dos guarda-redes tem sido desprezado. Um técnico que dá treino ao Quim como se fosse um pai a brincar com o filho no jardim é surreal. Têm de ser os avançado a treiná-los, como no jogo.
Preparador físico é uma figura que não cabe na tese de João Florêncio. Carlos Carvalhal concorda: abdicou de ter um no Sporting.
Real Massamá é exemplo de um clube que pode emergir, pelas estruturas que já tem e por se encontrar mais perto de ambientes socio-culturais onde ainda se joga algum futebol de rua.
por Isaura Almeida no Diário de Notícias
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário